Contos

Tempo de brincar com a linguagem e fazer literatura. Você está convidado a conferir alguns contos:

Desconcretar


No momento em que a vida parece tão concreta a gente desconcreta. Se não desconcretar, sabe lá o que acontece. As cidades são tão cheias de cimento, metal e concreto que a gente chega a esquecer que é gente e se acha máquina. Chega a esquecer que o outro é uma pessoa, feita de sangue, órgãos, sentimentos. E crê, sem sombra de dúvidas (ou árvores), que ele é de pedra ou asfalto.

A cidade tem horas que depreda o ser humano. O rico e o pobre, que carregam a cidade nas costas, causando dores lombares. Tem horas que faz a sola do pé esquecer a consistência dos grãos da terra. Faz a mão esquecer como é deslizar sua palma no limo da rocha, debaixo de uma cachoeira. Faz ter medo de minhoca, gafanhoto, percevejo. Faz pensar que o mundo é cinza tão cinza que nosso pensamento nublado. E o aeroporto da imaginação fica fechado pra pousos e decolagens.

Estranho que é um céu estrelado com chocolate e torradas, antes de dormir, longe da cidade. O silêncio do canto da cigarra e da água correndo no rio, que não é possível de ser desligada na tomada. O sapo martelo barulha depois das dez, toc toc toc toc toc. O homem e a mulher da cidade vão ligar pro síndico. Pedir que o sapo, de preferência, não volte a martelar até a manhã seguinte.

As formigas carregam folhas no sábado, no domingo, na segunda. Formigas trabalhando, não pise, desculpe o transtorno. É pra melhor servi-lo. É pra melhor formigar as mãos e as canelas de quem bate perna na avenida, preocupado com o horário marcado. Os pés dos motoristas que freiam e aceleram e freiam e aceleram no engarrafamento entre sua casa e a padaria.

O tatu abriu um buraco onde não vai passar o metrô. As pétalas da Onze Horas não ficam abertas todas as vinte e quatro. Se você já sabe disso, favor desconsiderar a mensagem, mas é que, quando a gente desconcreta, desconcreta pra valer. Pra esquecer o que se sabe ou não sabe. Fica com vontade de beijar o nosso amor e ser beijado. O nosso amor. Conhece o nosso amor? O beija-flor.

Não é fácil desconcretar, mas, pelo menos no raciocínio de quem desconcreta, isso se aprende com o tempo. As pessoas já perderam a noção de muita coisa, inclusive do tempo. Girassol e gira o mundo, vai a noite, vem o dia. Quando vai ver não tem mais o que ver. Mas, quando você desconcreta, reaprende a sentir o ritmo das horas; começa a pensar cuidadosamente em tudo isso. Até mesmo nas pessoas. E isso pode facilitar a sua desconcretação.
Preguiça de língua

Já passava de certa idade o professor quando foi acometido por um mal que a escola inteira começou a chamar preguiça de língua. Não era falta de conhecimento. A diretora se retratava aos pais dos estudantes, que vez ou outra estranhavam. Frequentou cursos até no estrangeiro, quando adolescente, mas agora anda a falar como se quisesse economizar português.

Começou pelo plural. No outro dia, um aluno jura que o ouviu conversando com o dono de uma barraca, na feira da esquina. Bom dia, Ernestino. Me dá dois mamão dos grande. Faz dois por três real? Era caso sério, o do professor. Preguiça de língua. Sempre uma forma de evitar letra ou enxotar palavra. Olha que era pós-doutor. Seriam desavenças com o alfabeto? Pura desfeita com o dicionário?

Deu a reduzir nomes próprios a coisa. Estive falando ontem com o Seu Coisa. Quem?

O Seu Coisa. Irmão de fulano, o Coisa. Se o interlocutor do professor não fingisse ter entendido quem era o Seu Coisa, o mestre era capaz até de responder com ofensa. O Seu Coisa precisa aprender uma lição. Ele agora se acha o tal. Se acha o quê? O tal, repetia com paciência didática. O tal.

Outra mania era substituir todos os números por letras. Não havia ocasião em que o professor especificasse quantidade sem usar as letras x, y ou z. Escolhia qualquer consoante ou vogal, aleatoriamente. Querido, já te expliquei n vezes, por a mais b, que você não deve interromper a minha explicação no meio. Guarde suas y dúvidas, espere eu terminar o raciocínio e então levante a mão para perguntar.

O mestre não se dava conta de que estava com preguiça de língua, talvez porque sua fluência em diversas línguas deixasse o ouvido surdo para as próprias palavras. Pois bem, era dotado de prática no manejo de sete idiomas. Além, claro, do mais fantástico. Sabia falar português ao contrário.

O avô lhe dera aulas de português ao contrário. O segredo para desenrolar a pronúncia perfeita é conversar virando cambalhotas, e segurar o ímpeto de abertura das narinas caso vislumbre o menor sinal de vontade de espirrar. Dessa forma, o português flui ao contrário, letra por letra, deslizando garganta afora.

Quase todo dia, os alunos pediam uma demonstração de prática da fala do português ao contrário. E lá ia o professor pedindo ajuda para afastar as cadeiras da sala e virar cambalhotas. E lá ia pegando uma pena que trazia sempre no bolso, para despertar o espirro.

“Seu Coisa” virava “Asioc Ues”. “Escola” virava “Alocse”. Ninguém entendia nada, contudo, era divertido. A cada frase falada rapidamente, os estudantes retribuíam a hábil tarefa com salvas de palmas. O homem girava no chão, abanava o queixo com a pena e segurava o nariz com o objetivo de prender o impulso do espirro.

Certa vez, o professor não suportou a força do espirro e, em pleno ato de cambalhotar, pronunciou cinco palavrões impublicáveis, com as letras na ordem certa, que ecoaram na sala da diretora. Por pouco não acabou demitido. Parou de realizar as performances. A fisionomia dos alunos se tornou mais triste depois da decisão docente, mas as aulas continuaram.

O francês aprendi nas cartas de vinho. O italiano nos cardápios dos restaurantes de massa. O russo nos rótulos das garrafas de vodka. O inglês nos discos dos Beatles. O espanhol nos discursos de Castro. O grego nos diálogos de Platão. Pela fonte de cada lição, dava para conhecer os gostos e as linhas de estudo do professor.

Tão inteligente e culto, porém, agora, com preguiça de língua. Qualquer dia desses abrevia a linguagem toda, invalida por completo o sistema gramatical. Um desobediente? Um revolucionário? Um irresponsável? Um aventureiro? Ou um preguiçoso da fala correta?

Quando soube do problema, o inspetor da escola levou um susto. Mesmo porque o professor passou a falar poblema, pobrema, probrema, ploblema, plobrema, pmoblera, prlmoabe, tudo, menos problema. Esse foi um estágio mais avançado do mal que acometeu o mestre.

Depois, ele não conseguiu falar mais palavra alguma, pois embaralhava letras como se fosse distribuí-las na sequência, em um jogo de buraco. Mas nunca distribuía. Travava os fonemas nos dentes, prendia nas mãos trincas e canastras.

Um médico falou em abstinência pela falta de prática do português ao contrário. Outro cogitou overdose de informação jornalística, que teria mexido com alguma área do cérebro. Eu mantenho a minha opinião. Preguiça de língua.


 Programa político


Amigo alfabetizado, amiga alfabetizada. Eleitor, eleitora. Você que tem um teclado de computador, uma caneta à mão. Que está anotando recado, estudando para a redação do vestibular ou digitando e-mail para o seu chefe. Você já me conhece. Eu sou o Trema.

Vim pedir o seu voto. Já é de conhecimento público que o acordo ortográfico da língua portuguesa entrará em vigor a partir do ano que vem, abolindo do idioma a minha participação em qualquer tipo de publicação. Isso é absolutamente injusto em um país democrático. Na semana passada, estive em contato com membros da classe de palavras, com objetivo de fazer valer meus direitos. Na porta do sindicato dos vocábulos, tornei-me vítima de um grave gesto de discriminação.

Um senhor chamado Substantivo veio para cima de mim cercado de adjetivos e ameaçando chamar os seguranças. O sujeito falou, em altos brados, que, sendo um sinal gráfico, eu não pertenceria à classe de palavras. Em seguida, ordenou que me retirasse do local. Nesse momento, outro senhor, de nome Verbo, postou-se na minha frente. De modo imperativo e demonstrando-se inflexível, empurrou-me para fora da sala, antes mesmo que eu tivesse direito à resposta.

Um dia depois, enviei carta ao sindicato, em protesto contra o comportamento ultrajante de seus funcionários (enviei carta, pois não é possível que em pleno século XXI as pessoas estejam despreocupadas com a manutenção do emprego de seus semelhantes. Por isso, quando representante de minha comunidade no orkut, criei um programa de aperfeiçoamento para inserção de Códigos de Endereçamento Postal no mercado de trabalho on-line: o "Minha Primeira Arroba", que reduziu os índices de exclusão digital dos CEPs, em todo o Brasil, qualificando milhares deles como endereço eletrônico).

Para surpresa geral, prontamente recebi resposta, assinada pelo diretor do sindicato, um cidadão chamado Pronome. Ele levou minhas afirmações para o lado pessoal, o que, infelizmente, prejudicou um debate sadio sobre a questão ortográfica brasileira.
Nos últimos tempos, meus adversários plantaram diversos assuntos na mídia, para desviar a atenção do povo em relação ao tema. Fui acusado de passar a mão na cabeça de delinqüentes, quando dirigi o instituto para recuperação de letras minúsculas infratoras, próximo à Rodovia Anhangüera, em São Paulo. Não é verdade.

Encontrei uma instituição com internos que faziam rebeliões constantes. Na administração anterior, as minúsculas ateavam fogo em teclas Caps Lock, escalavam parênteses para fugir do instituto e cobravam taxas extras para segurança particular dos pontos finais. Dois anos depois, a situação mudou completamente.
Vim pedir o seu voto. Você já me conhece. Ao lado das companheiras preposições, abracei a causa feminista. Estive na frente direta da luta para que elas não fossem vistas pelos homens como objeto. Além disso, investi em obras de infra-estrutura no Retiro das Gírias, onde expressões que fizeram sucesso em outras épocas – hoje aposentadas – enfrentavam dificuldades, sem verba para assistência hospitalar e compra de remédios.
Se eleito, lutarei também pela quebra de monopólio das primeiras cinco letras do alfabeto nas questões de múltipla escolha em concursos públicos. Criarei políticas de incentivo à prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis na região do Centro e do Ponto G. Porém, acima de tudo, reivindicarei uma reforma ortográfica justa, que assegure minha presença na língua portuguesa.

No dia da eleição, seja em prosa ou poesia, vote Trema, pelo bem da ortografia.

Aceitamos encomendas de textos e salgadinhos

Estou fazendo textos para fora. Tive a idéia quando vi uma vizinha vendendo salgadinhos nas horas vagas, depois do expediente na loja onde trabalha. A grande vantagem de saborear um parágrafo, em vez de uma empada, é que você não corre o risco de engasgar com a azeitona. E o que é melhor, independente do número de páginas consumidas, não engorda.

O único ser vivo que engorda de acordo com a quantidade de páginas é a traça. Não deve ser o nosso caso. Traças não lêem, nem escrevem. E muito menos comem empada. Traças não engasgam com azeitona, mas com cacófatos e pleonasmos que alguns escritores espalham por aí. Guardo traças de estimação na primeira prateleira da estante do meu quarto. Na semana passada, uma daquelas criaturas engasgou com a vírgula separando sujeito do predicado, tascada em nota de jornal velho de condomínio.

A coitada vomitou uma proparoxítona inteira e passou a noite no hospital. Hoje mudou a alimentação. Para evitar o menor risco, só devora sonetos de Camões. Outra ficou tão impressionada com o caso que começou a controlar a dieta. Corrói apenas papel vegetal, sem abusar de alguns monossílabos tônicos que contêm muito carboidrato ou cafeína, como pão e chá.

Desde que comecei a escrever textos para fora, percebi que as pessoas também comem palavras. Uma amiga brigou com o namorado e, ainda com o coração incendiado, veio desabafar comigo: "Ah, mas eu vou fazer o Olavo engolir tudo o que ele me disse no telefone". Sem contar os que, ao redigirem um texto, por descuido, comem consoantes ou vogais. O frio sem a letra r vira fio, que, se estiver desencapado, pode dar choque. E o que era para ser uma simples baixa na temperatura periga virar uma descarga elétrica na mão do sujeito.
Também não adianta comer uma letra e substituí-la por outra, tentando disfarçar a gula. O jogador de futebol que comeu o bolo estava fazendo aniversário. O que comeu a bola foi o melhor da partida. A invenção do rodo permitiu ao indivíduo se livrar da água da chuva, no quintal de casa. A invenção da roda possibilitou-lhe alcançar distâncias intercontinentais. Por sua vez, a própria letra H, tão muda, consegue ser plena de significados, pois é capaz de conferir a um homem toda a sua virilidade: "Sou homem com H maiúsculo", afirma-se por aí.
Outro exemplo é o do poeta Cassiano Ricardo, que alertou já no século passado sobre a questão, nos versos: "Uma pomba extremamente vizinha/de bomba./ (...)Um simples equívoco /(...)uma troca de b por p/e o mundo explodirá/em nossa mão". Quem escreve deve estar atento a essas distinções, de modo a transmitir sua mensagem com eficiência e preservar a integridade do planeta ou do sentido do texto.

Depois que comecei a fazer textos para fora, vi que muitas pessoas costumam fazer diversas atividades para fora. Minha avó costura, uma prima distante comercializa bijuterias, o porteiro do prédio vende chocolate na Páscoa. Minha vizinha leva consigo pelo bairro a cesta com empadas, bolas de queijo, rissoles de camarão, bolinhos de aipim. Eu carrego a cesta com textos para sites, revistas, livros, jornais, cases, filmes, o que mais me pedirem. E aceito encomendas.