Poemas


Utopias

Andando em uma rua sem saída
Livros despedaçados na calçada
As utopias estão rasgadas.
Os moradores da rua
Varreram os sonhos
Para dentro dos bueiros.
Os discursos universais estão calados
Pelas buzinas dos automóveis.
As crianças trancaram-se em casa
Vendo TV e computador
As pipas foram rasgadas como utopias.
Cada vizinho em sua casa.
Na rua somente passos rápidos
E troca de olhares desconfiados
Entre os transeuntes.
No quintal da última casa
Dormia um mendigo preguiçoso
Com um bilhete sugestivo:
Vamos mudar o mundo.

Roda de samba

O cavaquinho chorou
Pedindo acompanhante
O pandeiro apresentou
Junto a um nego saltitante.

O tamborim chamou
O bumbo, a cuíca, o bandolim
E a música foi assim:
Bum-Cum-Tum-Para-Tim-Cum-Dum-Dim-Dim.
O pobre no caixote

Batucando de improviso
Mostrou que o samba
Era que o mantinha vivo.
O sóbrio acusado

De ser desleal ao copo
Disse que não bebe.
Pois o samba por si só
Já o fazia alegre.

As moças com decote
E saia acima do joelho
Eram recebidas com um verso,
Sorrisos e tapete vermelho.
Ninguém marcava hora
A madrugada passava ligeira
O samba beijou a aurora
E deu adeus à sexta-feira.

Depois que todos foram embora,
O coração de quem ficou na roda
Continuou batendo assim:
Bum-Cum-Tum-Para-Tim-Cum-Dum-Dim-Dim.

O poema à espera de ser escrito

O poema
À espera de ser escrito
Dorme na página ao lado.
Estrofes que transpiram,
Letras que roncam,
Sons que rimam,
Rimas que monto e desmonto.
O poema
À espera de ser escrito
Guarda o riso
Ou o choro emocionado.
O susto, o prazer, a solidão
A alegria, o desespero, a calma
A sinestesia que é a vida.

O poema
À espera de ser escrito
Não liga para o ritmo do tempo,
Se passa ligeiro ou lento.
É um sussurro ou grito?
Amor extinto ou infinito?
Respostas a se revelarem
No ímpeto de uma caneta.

O poema
À espera de ser escrito
Contém os meus sonhos.
Aquilo que eu sou,
O que eu queria ter sido.
Aquilo que eu digo,
O que eu queria ter dito.

O poema
À espera de ser escrito
É o tiro que me atingiu,
Felicidade que nunca existiu.
A vida a cem
A vida a mil
A vida a zero.
Você que eu quero.
Fervilha nos dedos
Arde nos lábios
Trilha nas veias
Estoura nos poros.
Transborda
E consola e alivia e fere
O poema à espera de ser escrito.

Entre nações

Let it be, Bia.
Can we go, Golda?
Come with me, Mila.
What a view, Ilka!
I love you, Ulda.
Beijo de língua.

Ponto de vista

Aconchegado no vaso sanitário
Vejo o mundo feder
Nas páginas de um jornal.

A paixão

A paixão é erótica,
Hipnótica.
A paixão é despótica
Exótica.
Chega a ser resultado
De pura ilusão ótica.

Mulher só
Pedia só poesia,
Cinema, carinho, serenata
Ganhava o que não queria
Problemas, bravatas
E só desamor.

Cansou de dar nó na gravata
De namorado traidor
Que chegava em casa bem tarde
Cheirando a mentira e licor.

Levada por sua ira,
Tocava na lira
Canções antigas
Num pobre bar.
Lembrava as amigas,
Com os namorados
Subindo o altar.
Na hora do almoço
Jogava cartas na praça
Sem dinheiro,
Até arriscava trapaça.
Era uma mulher esquecida
No choro chegava a soluçar.
Só de pensar na vida severa
Só de pensar em não casar.

Cansou de dar nó na gravata
De namorado traidor
Não tinha sorte no jogo
Muito menos no amor

Segredo

Bate o meu coração emudecido
No ritmo que batem as asas de um pássaro em desespero
Quando palavras simples tuas
Reúnem-se para me contar um segredo.

Sou exército convelido,
Fiel monge sem mosteiro,
Frustrado artista inibido,
Poeta romanceiro.

Sou ourives aleijado,
Homem e seu pecado,
Quando palavras simples tuas
Aquecem o meu prazer em te ouvir.

Quando palavras simples tuas
Descem ao meu âmago
Como anjos vêm a terra,
A minha consciência se encerra.

E desprezo as guerras e as maldições,
E esqueço as trevas e as traições
Para o meu coração ligeiro
Ouvir eternamente o reboar de um amor verdadeiro.